|
O
|
BLUE
TRAVEL No. 24 | JUNHO 2005
TODOS OS
TEXTOS © BLUE TRAVEL
| KATYA DELIMBEUF
Namíbia
Viagem ao país cenário
De África volta-se com uma doença
incurável. Um ardor febril, como se o sol tórrido se infiltrasse
nas veias e nos fervesse o sangue até cedermos à tentação
de voltar. Quem vai a África volta sempre, e volta sempre diferente.
Só percebe quem foi. África negra é o domínio
do tacto, do olfacto, do gosto, da sensação. A Namíbia
faz parte dessa África, a um tempo quente e avassaladora, doce
e pacífica. Esta, caro leitor, é a viagem da sua vida
para fazer nem que seja uma vez.
Namíbia: saída
dum filme
Difícil tarefa a de traduzir por palavras aquilo que só
a alma e os olhos conseguem ver. Mas prometo, darei o meu melhor. Desconhecida
da maioria, a Namíbia é uma terra que de tão bonita
parece um país de cenário. Com paisagens deslumbrantes e
extensões a perder de vista, este é o reino do espaço,
de uma outra escala, onde a mão humana quase não se avista.
Viagem a um país mágico - o reino da liberdade.
«Kora», diz Rudi a Oma, cumprimentando-a. Oma é a chefe
da aldeia Himba onde nos encontramos, em pleno deserto do Namibe, no meio
do nada. Está à frente da tribo porque os homens foram para
fora - levaram o gado para as pastagens, do outro lado da fronteira, em
Angola. Só ficaram as mulheres e as crianças, repartidas
por seis palhotas de ar frágil, com tecto de argila seca e pálidas
condições de salubridade. Oma, a anciã, é
uma mulher muito magra, cuja idade ninguém sabe ao certo, de olhos
pequenos e penetrantes. Tem uma cara carismática e está
encostada à sua palhota, à luz do fim de tarde. Como todos
os Himbas, o corpo e a cara são cor de cobre, à conta da
argila vermelha com que se untam até aos cabelos, e está
nua, à excepção de um pano que lhe cobre a cintura
e o baixo ventre, de muitos colares e pulseiras que lhe comprovam o estatuto,
e do laço de couro que todas usam à cabeça, símbolo
de que são mulheres casadas. Ao lado de Oma está uma mulher
mais nova, bonita, com um enorme búzio ao pescoço
prova de fertilidade, passada de mãe para filha. É a sua
cunhada.
Rudi, o nosso guia, faz-nos sinal - podemos aproximar-nos. Cerimoniosamente,
cumprimentamos as mulheres presentes, começando por Oma, claro.
Ao fim duns minutos, estamos todos sentados à volta da fogueira,
elas a fumarem cachimbo, com os dois dentes da frente cortados em «v»,
segundo a tradição Himba. Que experiência extraordinária!
Aqui estamos nós, no meio do deserto do Namibe, sentados à
fogueira com os Himba, um dos últimos povos nómadas de África.
Ao centro da aldeia, uma cerca de madeira delimita um espaço circular,
à frente do qual se ergue uma série de pedras levantadas,
em semi-círculo. Este é o «fogo sagrado», a
divindade que os Himbas reverenciam, e pisar aquela fogueira ou entrar
naquele espaço é uma enorme ofensa para eles. Numa cabana
mais à frente, há três crianças à porta.
Lá dentro está um recém-nascido, com um dia de vida
apenas. A sua tez ainda é branca. A mãe, ao lado, parece
gozar de perfeita saúde. Só quando atingir um ano de idade
este bebé receberá um nome, justamente por a mortalidade
infantil ser muito elevada. Aos dez anos, as meninas serão oferecidas
aos tios, para casarem, e assim perpetuarem um modo de vida que se repete
inalterado há séculos.
O dia cai e regressamos ao lodge de Serra Cafema, a norte
da Namíbia, junto à fronteira, onde o rio Kunene cria um
oásis de verde no meio da aridez do deserto. Aqui, a areia junta-se
à vegetação, numa combinação invulgar
de dunas laranja e tufos de erva. Imerso no meio das árvores, ladeado
pelo rio, pejado de crocodilos, o campo de Serra Cafema é
um hino ao bom gosto e ao conforto, dentro da simplicidade rústica
dos materiais da natureza. Os oito bungalows, distribuídos
ao longo de passadeiras de madeira construídas em altura, com os
ramos das árvores quase ao nível do visitante, têm
tecto de colmo, chão de madeira vermelha, e uma cama colonial gigantesca,
envolvida em dossel branco. O alpendre com vista para as dunas e as suas
cambiantes é a cereja em cima do bolo. Como em todos os locais
na Namíbia, também aqui você está completamente
isolado do mundo: não há televisão, nem internet,
nem cobertura de rede, nem sequer telefone. É só você
e a sua cara-metade; ou você e você...
Foram os Himbas que, em escassos três meses, puseram de pé
o lodge de Serra Cafema. Aliás, a terra onde o campo
se encontra é alugada pela Wilderness Safaris (sob a chancela da
qual fazemos esta viagem), a esta tribo. Essa é de resto, uma das
filosofias desta empresa, que inteligentemente procura desenvolver
as áreas em que se instala juntamente com as populações
locais. A terra é alugada às tribos, as pessoas são
formadas para trabalharem nos lodges, e passados uns anos
tornam-se auto-suficientes. Importa acrescentar que a Wilderness se especializa
em safaris de altíssima qualidade, e tem por objectivo (mais que
conseguido, garantimos-lhe nós) proporcionar experiências
inesquecíveis ao viajante. O que começou em 1983 como o
sonho de dois homens que queriam servir um GinnTonic fresco
ao pôr-do-sol é hoje uma eficiente e personalizada empresa
presente em oito países, com mais de 60 lodges e uma
impressionante qualidade de serviços.
Voar nas dunas
Acordar de alvorada aliás, como todos os dias em África.
A jornada começa sempre cedo aqui, tanto por causa do calor, como
para podermos usufruir de toda a beleza do nascer do dia. Às 5h30
da manhã, um toc toc na porta do quarto arranca-nos
do sono com promessas de aventuras. É Rudi, o nosso guia, que nos
vem acordar. Às 6h, já estamos a tomar o pequeno-almoço,
antes de pegarmos nas motoquatro e nos fazermos aos trilhos de montanha.
Sentimo-nos uns aventureiros, montados em cima destas motas todo-o-terreno,
enquanto subimos em direcção às dunas laranja...
Rudi vai explicando os factos do deserto: «É muito divertido
andar de motoquatro, mas também temos de aprender um bocadinho,
sim
?» Ele é de etnia Damara, por isso, fala a linguagem
dos cliques
Pedimos-lhe demonstração pronta,
ao que responde com uma frase com quatro cliques diferentes.
Incrível! «Vamos dançar
?»
A montanha oferece-nos as paisagens mais extraordinárias. Tufos
de relva verde mesclam-se na areia laranja das dunas. Por vezes, o deserto
dá lugar à pradaria, com planícies de erva clara
onde antílopes e gazelas correm elegantemente à nossa passagem.
A sensação é fantástica. São 7h da
manhã de um domingo (é preciso alguém lembrar-nos),
e nós de motoquatro na montanha, no deserto do Namibe
Quem
diria que custa tão pouco
?
Finalmente chegamos às dunas, altas, imponentes. Aqui, «não
se pode andar muito depressa nem muito devagar
», explica Rudi.
Estamos confusos
Mas depressa a dúvida dá lugar à
fantástica sensação de liberdade que é subir
e descer as dunas a alta velocidade. Soltam-se os ímpetos, e aventuramo-nos
agora em curvas íngremes, cortamos dunas a meio, experimentamos
a adrenalina até ao limite. Começam as provas de maior risco:
descemos dunas com forte inclinação
Mas a melhor surpresa
está guardada para o fim: descer de motoquatro uma duna quase a
pique
Apreensão entre os participantes
«Quem
quer ir primeiro?» Não há voluntários. Finalmente,
um de nós decide-se. Rudi dá boleia até
meio da duna, explicando como largar o travão durante alguns segundos
e deixar deslizar o jipe até voltar a travar. «Largar e travar,
largar e travar»
Visto de cima, o acto parece loucura
mas «aqui vai disto!» É óptimo e libertador,
e o melhor mesmo, se tiver coragem, é esquecer o travão
e deixar-se ir duna abaixo.
Duna 45
De Serra Cafema, voamos para Sudeste. Aqui, a avioneta é o meio
de transporte usual, e habituamo-nos a apanhá-lo como quem vai
até à paragem do autocarro. Destino: Sossussvlei, ao encontro
das maiores dunas do mundo. Podem chegar aos 300 metros estas dunas do
deserto do Namibe que se espraiam numa faixa de 2000 km de comprimento
por 150 km de largura. Tem uns respeitáveis 80 000 anos esta região,
e as dunas até 40 000. 4h30 da manhã: o costumeiro toc
toc na porta do quarto. Desta vez é Sam, o nosso guia aqui
no Little Kulala, onde ficamos, que nos vem acordar. Uma hora depois,
quando nos fazemos à estrada, o sol é ainda uma ínfima
linha laranja no horizonte, e as dunas são ondas com duas faces:
uma negra, outra ocre, com uma serpente a dividi-las.
À medida que o sol desponta, faixas progressivamente maiores da
montanha vão enrubescendo, até o enorme maciço de
Sossussvlei ficar completamente rubro, qual pavão orgulhoso que
recebe uma dádiva do sol. É uma oferta divina esta paisagem.
Às 6h30 da manhã, já uma fila de formiguinhas (pessoas)
sobe atarefadamente uma das dunas. Nós fazemo-lo mais à
frente, que dunas não faltam e queremos uma só para nós.
Às mais bonitas são dados números: existem 58 dunas
numeradas, e preparamo-nos agora para subir o Big Daddy. Com
300 metros de altura, esta é a maior duna do deserto do Namibe.
A areia é macia e fofa, e os pés enterram-se à medida
que subimos no vértice, como na aresta de uma pirâmide. Equilíbrio,
precisa-se! Agora o vento sopra com força, assobia-me nos ouvidos
e os grãos de areia fustigam-me as pernas. Mas é uma demonstração
fantástica de força da natureza. Subir o Big Daddy
é um valente exercício afinal, são 300 metros
em equilibrismo, na areia fina. E quando chegar a altura de descer, até
pode fazê-lo a correr, que as pernas enterram-se até ao joelho,
fazendo da sua corrida um «slow motion».
Como a seguir a uma dura prova há sempre uma recompensa, o seu
prémio encontra-se cá em baixo: Dead Vlei (vlei
= planície) é um autêntico cenário de filme.
Na base das dunas, estende-se uma planície glaciar, como uma pista
de gelo seco ou a cobertura de açúcar dum bolo, onde esqueletos
de árvores mortas estendem ramos que parecem garras, como se tivessem
expressão. É um lugar incrivelmente cénico, e o que
poderia parecer desolador adquire contornos de grande beleza. Aqui, o
vermelho das dunas cruza-se com o branco do chão calcificado, o
azul do céu e o negro das acácias centenárias. É
um cenário lindíssimo, onde facilmente se poderia rodar
um episódio da Guerra das Estrelas. E onde reina uma paz...
São 9h30 quando paramos para o brunch - embora pareça
que estamos acordados desde sempre. Debaixo da sombra de uma acácia
de copa larga, Sam instala duas mesas de madeira, põe uma toalha
de motivos africanos, tira copos e pratos de alumínio, e até
instala um lava-mãos
! Depois, retira da lancheira pão,
compota, iogurtes, carnes frias, queijo, chamuças, almôndegas,
coxas de frango, salada de beterraba, pasta, cerveja, sumos, chá,
café
Uff! A geleira mais parece a mala do Sport Billy, donde
sai tudo e mais alguma coisa para nosso bel-prazer. Aqui nos deixamos
ficar languidamente, à sombra, onde a temperatura contrasta com
o calor abrasador que está ao sol. Sopra uma brisa agradável
e o piquenique sabe a recordações de infância felizes.
Mas a propósito da Namíbia ser a terra de uma outra escala,
talvez ajude perceber que, apesar do país ter o tamanho da França
e da Inglaterra juntas, conta apenas com 1,8 milhões de habitantes.
Colónia alemã até 1926, a Namíbia só
se tornou independente da África do Sul, que entretanto a ocupou,
em 1990. Desta vez, a sombra do biplano leva-nos de novo até Norte,
para acabarmos em beleza no luxo requintado do Little Ongava, uma propriedade
privada de 30 000 hectares, a 10 minutos do Parque Nacional de Etosha.
Aqui habitam inúmeras espécies animais, e não é
raro vermos famílias de girafas ou de leões a beber água
no bebedouro em frente à cabana onde jantamos. Entregamo-nos nas
mãos diligentes de Andrew Shaana, o jovem chef do Little
Ongava que pergunta a cada um dos seus hóspedes o que gosta e não
gosta. «Eu faço amor com a minha comida», diz ele,
para explicar a paixão com que cozinha. Como só há
três (pequenas) cabanas (de 100 m2, melhores do que
qualquer apartamento, com direito a piscina no terraço e tudo),
os jantares são sempre familiares, com um máximo de nove
pessoas (seis hóspedes + guias) por baixo das estrelas, seguidos
de longas conversas sobre viagens e trocas de experiências.
Olhando para trás, fica-nos a impressionante qualidade e personalização
do serviço as camas abertas a meio da tarde, os brindes
ao pôr-do-sol, o acordar de manhã por alguém que nos
vem bater à porta
E o lema da Wilderness Safaris: «Our
journeys change peoples lives». Na hora da despedida, todas
as gargantas se apertam num nó. Não há hóspede
que vá embora sem dar um longo abraço ao seu guia. Ninguém
parte daqui facilmente. E vai-se com uma única ideia em mente:
voltar.
|||||||||||||||||||||||||||||||||
TODOS OS TEXTOS
© KATYA DELIMBEUF
[ NOTAS
CURRICULARES ] [ CONTACTOS ]
|
|
|
|