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BLUE
TRAVEL No. 17 | AGOTO-SETEMBRO 2005
TODOS
OS TEXTOS © BLUE TRAVEL | KATYA DELIMBEUF
Botswana Magia negra
Situado
na África Austral, entre a Namíbia e o Zimbabwe, o Botswana
oferece uma experiência única no continente sub-sahariano.
Para lá de ser o país mais rico de África - e principal
produtor mundial de diamantes -, soube fazer os investimentos certos e
apostou num turismo de elevadíssima qualidade, para poucos. Há,
ainda, outra razão de peso para esta ser uma viagem irrepetível:
o poder do delta do Okavango, o maior delta interior do mundo, gerador
de uma riqueza e de uma beleza ímpares. Este é o
sítio em África para ver animais. E há magia no ar
Por
Katya Delimbeuf / Fotos de Nuno Oliveira
«I fell in love in Africa». Bem podiam ser estas as primeiras
palavras de Karen Blixen no filme «África Minha», em
vez de «I had a farm in Africa». Melhor seria mesmo dizer
«I fell in love with Africa», pois é impossível
resistir aos encantos desta amante que deixa marcas na pele ao jeito de
ferro em brasa. África entranha-se com a facilidade de um beijo,
como uma mulher voluptuosa que entra de mansinho na cama e se aninha,
junto ao coração. Fica o aviso: o estado de embriaguez demora
cerca de uma semana a passar.
Vozes quentes, cânticos e danças
acolhem-nos para o jantar. Uma vintena de Bayei, no Little Vumbura, um
lodge em pleno delta do Okavango, presenteia-nos com a experiência
mais genuinamente africana que podíamos receber naquele momento.
Em intervalos compassados, o ritmo marcado por bateres de pés e
acompanhado de bamboleares de ancas, vinte vozes masculinas e femininas
alternam harmoniosamente, num poderoso e envolvente coro. Com gritos tribais
à mistura, dançam à nossa volta, em torno da mesa,
arrancando arrepios à pele mais couraçada. Ainda não
passámos a entrada e já este aperitivo tem sabor
de prato principal, da mais fina qualidade. Estou saciada. E de alma arrepiada.
Nem preciso de comer mais.
A doçura dos Bayei, uma das duas principais tribos do Botswana
(a outra são os Batawana), que sempre viveu nas margens do Okavango,
é algo que não se explica. Mas reconhece-se no sorriso da
bela Molly, no desvelo com que Júlia, a cozinheira, se ocupa de
nós, ou na pureza com que Serese, o condutor do nosso mokoro
(o barco tradicional do delta), nos confessa querer casar com uma das
meninas, apesar desta já ser casada
«Envolvo-me tanto
com eles», confessa Mel, a ruiva de olhos azuis que gere o Little
Vumbura há quatro anos. «São a minha família.
Vêm falar comigo sobre tudo: questões da vida sexual, problemas
de dinheiro, querelas entre eles
»
Não só pela simpatia do povo, mas também, é
um facto que se respira no Botswana um ambiente especial. Aqui, sente-se
bem o milagre trazido pela água a um país de outro modo
marcado pela aridez do deserto do Kalahari. «Pula!», brinda-se
à mesa, lembrando que chuva (o significado da palavra)
é a maior dádiva que um país africano atingido por
duas décadas de seca pode pedir. A provar que água é
sinónimo de riqueza, «pula» é também
o nome da moeda do Botswana.
A fertilidade do delta do Okavango resulta de uma combinação
de factores geológicos e biológicos, como o papiro que cresce
nas margens e cujos depósitos são particularmente ricos
em sedimentos, ou as colinas de térmitas que estão por toda
a parte e que são responsáveis pela formação
de ilhas e planícies inundadas
A zona do delta é de
uma inusitada riqueza e atrai uma imensa diversidade vegetal e animal.
Mas o Botswana conta também com leis de conservação
ambiental entre as mais avançadas do mundo. 37 por cento do país
está protegido em reservas e parques nacionais, e algumas destas,
como a reserva de Chiefs Island, no Parque Nacional do Moremi, remontam
à data da independência, em 1966. Nação estável,
que nunca conheceu uma guerra (mesmo depois de deixar de ser um protectorado
inglês), o Botswana é um país rico, graças
a uma sucessão de bons governos e
aos diamantes. Actualmente,
é o principal produtor do mundo.
À descoberta do delta
O mokoro desliza suavemente na água, por entre os nenúfares
de todas as cores - azuis, amarelos, rosa - que envolvem o Little Vumbura,
com os passageiros bem sentados e o «condutor» de pé,
de longa vara na mão, a dirigir. Este é o transporte tradicional
do delta, usado há pelo menos 300 anos - uma canoa escavada de
um tronco de árvore, e é um dos passeios mais apreciados
pelos que ficam nos lodges do Okavango.
Existem muitos campos à escolha na área do delta (só
da Wilderness Safaris são 13), e o interessante é que pode
ser você mesmo a compor a sua viagem, segundo os seus gostos pessoais.
Nós optámos por lodges que abarcassem as duas
principais zonas do Okavango: a das planícies permanentemente inundadas,
e as que só sazonalmente ficam submersas. Assim, temos a certeza
de ter uma perspectiva geral. Além disso, como a Wilderness é
reconhecida mundialmente pelos seus esforços de conservação
o que lhe valeu, em 2003, um prestigiado prémio da indústria
do eco-turismo (o «World Legacy Award for nature based tourism»,
atribuído pela Conservation International & National Geographic)
-, sabemos que estamos em boas mãos.
Enquanto conduz o mokoro, Serese ensina-nos umas palavras
em setswana: «Omantejá» («És
tão bonita!»), «Arbine» (Vamos dançar),
«Qea Orata» (Eu amo-te), e «Kivata Onhala» (Quero
casar contigo). Pela escolha do repertório, percebe-se que Serese
é um rapaz romântico, mas nunca se sabe se estas expressões
não podem vir a dar jeito
Esta terra é pasto fértil
de paixões e rastilhos ateados repentinamente
Não
é por acaso que é um destino privilegiado de luas-de-mel
E nada mais natural que o poder do maior delta do mundo que não
desagua em lado nenhum, antes se evapora -, gerador de tanta fertilidade
à sua passagem, acabe também por semear algumas partículas
de magia no ar
A sombra de Serese, de pé, reflecte-se no delta, e os lilly
trotters (ou jesus birds, assim chamados por caminharem
sobre a água), pássaros que fazem patinagem artística
em cima dos nenúfares, dão colorido à viagem, antes
de pararmos numa ilha, para chá e biscoitos. Os guias pedem-nos
para ficarmos ali, enquanto verificam a área. Boa ideia, já
que uma manada de búfalos larga em debandada a escassos metros
Voltamos do passeio cedo, pelas 10h20, muito a tempo de dar um mergulho
na piscina, antes do brunch, às 11h. A seguir, podemos
fazer uma sesta retemperadora (depois de acordar às 5h30 da manhã,
sabe bem), até que sejam horas do chá, às 15h30,
e se siga para a segunda actividade do dia: safari, para ver os animais,
ou passeio de barco, para ver o sol afundar-se na água, por entre
as margens de papiro. Regressa-se por volta das 19h30, e janta-se uma
hora depois, sob um magnífico céu estrelado, iluminados
pela luz das velas ou pela fogueira que crepita todas as noites ao relento,
onde os serões se eternizam agradavelmente à conversa, na
companhia de um copo de vinho. Esta é a (agradável) rotina
dos campos no Botswana.
Foi numa dessas noites à volta da fogueira, no lodge
de Duba Plains, que conhecemos Sally Hsu e Jacques Dessange, um casal
de Paris. Ele é um magnata dos cosméticos e
dos cabeleireiros tem mais de mil salões espalhados por
45 países -, e conhece África de ponta a ponta. Há
20 anos que vem cá caçar e tem troféus pela casa
toda. Para Sally, no entanto, a sua esposa, uma «gueixa» asiática
de Taiwan com 36 anos, esta é a primeira vez no continente africano
- e a primeira que realiza o seu sonho. «Desde os 16 anos que sei
que quero vir morrer a África», afirma, enigmática.
Soube-o depois de ver «África Minha» e de se perder
nos documentários que passavam na televisão. O seu plano
é comprar uma casa nesta zona, e aqui ficar.
No fim da noite, os guias acompanham-nos até aos quartos
é proibido andar sozinho quando não há luz. Como
não há cercas e estamos numa ilha, os animais andam à
solta. E justamente, numa manhã de preguiça em que me deixei
dormir, acordo com um guia a bater-me à porta, pedindo-me para
não sair do quarto: «Há uma leoa à solta no
acampamento
» Curiosamente, não sinto o menor receio
De repente, na planície em frente ao meu quarto, a cerca de 200
metros, avistamos a leoa. Agachada entre as ervas, observa uma manada
de antílopes que tem pela frente. Mas o vento vira e as gazelas
disparam. Acabou a caçada.
Viver no mato
O dia desperta com o inebriante cheiro a jasmim e «wild sage»
(salva selvagem) que o nosso olfacto já se habituou a associar
ao amanhecer. Mas não é este o único sentido que
se aguça no Botswana. Aprende-se também a identificar mais
um canto entre a orquestra de pássaros que nos acompanha noite
fora em especial, o da pomba de olhos vermelhos, um «tetetete-te-te»
compassado e ritmado, sempre igual. Não é nada difícil
viciarmo-nos nesta «vida no mato», como aqui lhe chamam. Adormecer
com o rugido dos leões ou o som dos hipopótamos, tentar
perceber a proximidade dos animais em relação às
nossas cabanas, tem um efeito especial sobre nós. «Viver
na selva é uma opção de vida», confirma Erika,
gerente do Duba Plains. «Temos de passar muito tempo connosco próprios.
Mas há uma qualidade de vida que não existe em mais lado
nenhum.» Ela, que trabalhou em hotelaria uma série de anos,
decidiu regressar às origens, ao «mato». E garante:
«Se não ouvir um telemóvel nem vir televisão
o resto da minha vida, não me importo».
Hoje, rumamos ao Little Mombo, no Parque Nacional de Moremi, perto de
Chiefs Island, conhecido como um dos melhores campos para ver animais
em toda África. Aqui, a diversidade é imensa o que
faz com que haja de tudo, quase como no supermercado. «O
que querem ver?», pergunta Thomson, o nosso guia de «dreadlocks»
jamaicanas para nós, a essência do verdadeiro guia
africano. «Leopardo», arriscamos nós, sabendo que é
dos mais difíceis de avistar. «Vocês têm de pedir
coisas verdadeiramente desafiantes», retorque Thomson, com um sorriso
malandro. «Crias de leão, girafas, zebras, babuínos,
búfalos, hienas, antílopes, gazela, isso para nós
é mato
» «Ok, nesse caso, queremos
ver coalas, cangurus e afins, boa?»
A riqueza da vida animal no Little Mombo é tão grande que
neste campo as únicas actividades são os safaris («game
drives») - um de manhã (despertar: 5h30), e outro à
tarde, a seguir ao chá (pelas 16h30), até ao pôr-do-sol.
Acondicionados na Land Rover (a marca faz toda a diferença, já
que a Land Rover é tratada pelo nome, nunca como carro
ou jeep
), Thomson avisa para nos agarrarmos bem e entra
pelo mato dentro, numa picada
O rádio informa que há
cães selvagens a rondar um leopardo, a uns km, e a promessa desta
visão inusitada, matando vários coelhos de uma
cajadada só, faz-nos disparar: «Os animais não esperam
!
Lançados pelo meio do mato, galgamos arbustos e sentimo-nos um
pouco como Livingstone ou outros exploradores que desbravaram a selva
africana
Mal temos tempo de nos desviar dos espinhos que arranham
a Land Rover por todos os lados, mas isso só acresce à emoção
A meio da viagem, Thomson avista uma hiena que cheira algo no ar, e decide
segui-la: «Ela sabe alguma coisa que nós não sabemos;
senão, não estaria a correr desta maneira
» Bingo!
Uns metros mais à frente, lá está o nosso leopardo.
Caçou um antílope, e tanto os cães selvagens como
a hiena querem parte dos despojos. Os cães roubam a caça
ao leopardo, e assistimos agora à sua refeição. É
como se estivéssemos dentro dum documentário da National
Geographic... E os animais nem sequer dessem pela nossa presença
Esta é talvez a principal diferença entre fazer um safari
no Botswana ou no Quénia
É que enquanto aqui há
um máximo de três jipes que comunicam entre si para partilhar
a visão de crias de leão ou de um leopardo, não há
jeeps em círculo nem dezenas de flashs
de máquinas fotográficas
Continuamos o safari com noção
da nossa sorte. Thomson reconhece marcas de leões deitados na relva,
e enfia novamente a Land Rover pelo meio do mato, levando árvores
atrás... De repente, damos de caras (literalmente) com quatro leões
(machos) a dormir
Um deles está de barriga para cima, como
um gato grande a rebolar
Estamos impressionantemente perto, a um
metro quase, e olhamo-los nos olhos. Que visão incrível!
É como se os animais não nos vissem pois não
alteram minimamente o seu comportamento
Nessa mesma tarde, encontrámos
ainda elefantes, girafas, hipopótamos, búfalos e zebras
- o animal-símbolo do Botswana, por causa das suas listas brancas
e pretas, que simbolizam o convívio entre raças.
De regresso aos nossos sumptuosos aposentos no Little Mombo, um poema
espera-nos, em cima da cama, aberta a meio da tarde. O nosso apartamento
em cima da savana tem vista e som para todos os animais que aqui pastam
- zebras, búfalos, antílopes
O vício de África
entranha-se
Antes de partir, abraço uma baobab,
essa árvore sábia de 5000 anos, a mais velha do continente
africano, a quem prometo voltar. E rumamos para a última etapa
da viagem: Abus, um campo privado que proporciona uma experiência
de três dias com os elefantes.
Cleópatra no seu séquito real
Oito enormes elefantes estão perfilados à nossa frente.
São-nos apresentados pelo nome, idade e nacionalidade, assim como
os seus treinadores. Todos sem excepção foram resgatados
do abandono ou de circos e locais onde eram explorados. Os tratadores
ensinam-nos a subir para os elefantes (sempre pelo lado esquerdo), que
estão ajoelhados no chão. «Primeiro o pé esquerdo
no joelho do treinador, depois, joelho na sela, depois a perna, e upa
»
Já está! Mas só quando o quadrúpede se põe
de pé temos noção da sua imponência
Os
tratadores sentam-se por trás da cabeça do animal, e manobram
para a esquerda ou para a direita pressionando com a perna a respectiva
têmpora
Cada elefante tem o seu tratador, e alguns deles têm histórias
interessantes para contar. Big Joe, por exemplo - que ganhou
a alcunha graças ao seu metro e 98 - , é o treinador de
Benny, o elefante mais velho. Mas era também o de Abu, o elefante
que dá o nome ao campo e que teve honras de protagonista no filme
de Clint Eastwood, «Caçador Branco, Coração
Negro», rodado em 1990. Abu era considerado um elefante único,
pela inteligência que demonstrava e pela forma como lidava com humanos.
Fazia coisas extraordinárias, como pegar numa pessoa com as suas
presas, sem a magoar.
É confortável esta montada, e não é difícil
imaginar como se terá sentido Cleópatra ou Alexandre o Grande
no seu séquito real. Se puder, peça um elefante só
para si, é muito mais agradável. Sentado no dorso deste
quadrúpede, vêem-se os animais de outra perspectiva: os pássaros
estão mais perto, vemos as impalas de cima
A savana tem outro
encanto. A sensação de montar estes animais é extraordinária.
Ficam-me os sons das pesadas passadas ao entrar dentro de água;
o frémito que lhes perpassa o corpo, quando gritam; ou acompanhá-los
na travessia de um rio.
Como esta é uma experiência de três dias, os hóspedes
são sempre os mesmos, e a sensação de família
é omnipresente e intencional. Quer seja nos jantares, como
nos deliciosos piqueniques preparados à sombra de uma vereda, com
direito a sesta e mantas à beira-rio, a ideia é mimar o
viajante até ele não poder mais. Ghara Gozlou, o gerente
de Abus, é o anfitrião que vela pelo bem-estar de
todos. Aos 39 anos, este ex-director do Deutsche Bank em Londres trocou
o Jaguar e o fato e gravata «pela vida no mato».
Depois de 18 anos de Reino Unido, decidiu descobrir se este era apenas
um sonho de infância ou algo mais. «Queria saber se era capaz
de viver longe da cidade e dos luxos». Deixou crescer o cabelo,
perdeu 5 kg nas primeiras semanas, e diz, hoje: «Tenho o melhor
emprego do mundo. A maioria das pessoas vem aqui fazer a viagem da sua
vida. Eu quero que essas pessoas tenham uma experiência incrível,
que chorem ao ir embora. Na maioria dos casos, isso acontece.» Sabem
que esta viagem é única. Cada viagem a África é
única. Mas esta África não se repete.
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