VIDAS Nº 1535 29 Março 2002

Dar tempo ao tempo

No Banco de Tempo, depositam-se horas em vez de euros. Além de original, o projecto vem demonstrar que tempo é muito mais que dinheiro.

Texto de Katya Delimbeuf
Fotografias de João Carlos Santos

Abrantes, num dia chuvoso. Um gabinete branco e aquecido, com o tecto decorado em estuque, serve de sede ao primeiro Banco de Tempo do nosso país. Uma urna azul domina a sala, o «cofre» onde diariamente são depositados os cheques-tempo. Em cima da secretária repousa o dossiê com as fichas dos clientes, ao lado há extractos de conta, no ecrã do computador anotam-se os débitos e os créditos. E, no entanto, não há qualquer vestígio de dinheiro. Nesta agência bancária, a única coisa que entra e sai é tempo. Um dos bens mais preciosos dos nossos dias. E também um dos mais escassos.

Aqui, troca-se tempo por tempo. Assim, um membro do Banco de Tempo pode ir buscar os filhos de outro à escola, e em troca receber uma travessa de bacalhau com natas. Ou uma lição de informática. Ou alguém que lhe lave a louça ou as janelas. Entretanto, geram-se conhecimentos, laços, amizades. E criam-se redes de solidariedade como as que existiam antigamente, que o desenvolvimento e as cidades acabaram por dissipar.

Dentro do gabinete, por trás da secretária, uma mulher com ar de menina, franzina, de cabelo preto, curto, acolhe-nos com um sorriso simpático. Marisa Fábrica é a «gerente do banco» e a sócia número um. O presidente da Câmara convidou-a para estar à frente da primeira agência portuguesa do Banco de Tempo e «a menina Marisa», como todos a conhecem, aceitou o desafio. «Porque adoro projectos novos. E porque ninguém davanada por isto e agora é o sucesso que é.» Não é sem orgulho que Marisa, 35 anos, mãe de dois filhos, fala da sucursal pioneira que gere há pouco mais de um mês. Já lá vão 33 membros desde que abriram as portas. Na ficha de adesão que todos os membros preenchem e onde indicam os serviços que se oferecem para prestar, Marisa voluntariou-se para todo o tipo de tarefas administrativas. Até agora, ajudou uma «cliente» a redigir uma carta oficial, e prepara-se para meter a mão na massa de declarações de IRS que já se avolumam num montinho considerável. Em troca, Marisa pediu a costura de um saco de viagem ao sr. Franquelim e um bacalhau com natas à D. Teresa. «Serviu lindamente para o almoço de domingo», confidencia.

A senhora do bacalhau com natas dá pelo nome de Teresa Santos. 50 anos, casada há 30, Teresa atravessa nesta altura um período complicado da sua vida - está prestes a divorciar-se. Mãe de dois filhos crescidos e com dois netos, é proprietária de um restaurante - daí o pendor para a comida. Para o Banco de Tempo já fez várias travessas de rissóis, o muito requisitado bacalhau com natas e roupa para bonecas. Em troca, um dos membros ajudou-a a elaborar uma carta importante. «Agora que tenho tempo livre, o Banco de Tempo é uma forma de me sentir útil aos outros. Em vez de estar em casa - se calhar a chorar -, desanuvio.»

A sócia número 10 considera que «a iniciativa é de louvar, porque antigamente as pessoas ajudavam-se muito mais umas às outras; agora, estão de novo a aproximar-se. Além disso, passando por uma estrutura formal, têm mais confiança em solicitar serviços». Antes da adesão ao banco, há sempre uma entrevista - «para se perceber se as pessoas são credíveis», diz a gerente - e são pedidas referências, três nomes e respectivos números de telefone que confirmem a idoneidade dos candidatos.

O convívio é um dos benefícios mais evidentes do Banco de Tempo. «Este projecto pode fazer face a situações de isolamento complicadas», lembra Marisa, em começo de conversa. Na verdade, há sócios que, na ficha de adesão, solicitam simplesmente companhia. A função social da associação evidencia-se em relação aos reformados. Albertina e Franquelim, o casal de sócios número 2 e 3, são disso exemplo. Ambos reformados, tinham tempo a mais entre mãos - e este tornava-se demasiadas vezes difícil de suportar.

Franquelim Pereira tem 57 anos. É o sócio com mais horas «de banco». Especialmente requisitado pelos seus dotes de alfaiate, é do convívio que tinha como carteiro - uma das várias profissões que exerceu - que sente mais a falta. Foi essa falha que o banco de tempo veio colmatar. Franquelim soube da iniciativa pela rádio. Pegou nele e na mulher e foram os primeiros a inscrever-se, a seguir à «menina Marisa». Em troca dos arranjos de costura, quis aprender a navegar na Internet. Teve duas lições e agora já sabe usar o correio electrónico. «Quando viu o e-mail do filho até os olhos se riram», lembra Marisa. «A ideia do banco de tempo é boa, mas já existia há uns anos, nas povoações», nota Franquelim. «Não havia dinheiros mas havia amizades. Num dia plantava-se centeio, no outro retribuía-se o favor e plantavam-se batatas... Infelizmente, hoje em dia toda a gente quer trabalhar a troco de dinheiro.»

A mulher de Franquelim, Albertina Ascenção, 51 anos, queria aprender ponto-cruz e arraiolos. Em troca, ofereceu-se para ir buscar crianças à escola, comprar medicamentos à farmácia, animar festas, ou «dar apoio a idosos, coisa que às vezes a própria família não consegue fazer». Albertina tem um filho deficiente, e isso dá-lhe «uma sensibilidade acrescida para os problemas humanos», garante. «Ficou tão feliz com a primeira lição de ponto-cruz! Por ter conhecido uma pessoa nova, a Sara, mas também pelaforma como a lição foi dada...», diz Marisa. Depois, acabou por conhecer a mãe e a avó de Sara, que também aderiram ao Banco. Criou um novo círculo de amizades. Para Albertina, a maior mais-valia do banco é recuperar «valores que se estão a perder».

Mas se há pedidos tradicionais e de fácil resposta, como ir buscar crianças à escola, ajudar em tarefas domésticas, dar lições de matemática ou fazer pratos especiais para festas, de vez em quando também há surpresas... Como quando Ana Maria Antónia pediu ajuda para matar 20 frangos. É na sua quinta, onde a tarefa foi (literalmente) executada, que conversamos, com patos, galinhas, pássaros e cabras em pano de fundo. Casada e mãe de três filhas, esta mulher de aspecto simples e casaco de malha amarelo ofereceu-se para ajudar pessoas de idade ou fazer limpezas. Destaca principalmente as vantagens sociais do Banco de Tempo: «Foi uma coisa formidável que apareceu. Está um velhote sozinho em casa, sem ninguém que o leve a uma consulta... Agora, já não tem de ser assim. E além disso, poupa-se dinheiro», diz ela, que solicitou explicações de matemática para a sua filha Sónia. Graças ao Banco, Ana Maria trocou quatro explicações - que deu Matilde Heitor, uma funcionária pública de 39 anos - pela lavagem das janelas de sua casa.

Maria Eduarda Olival foi quem ajudou a matar os frangos. Aos 41 anos, casada, de cabelo curto e aspecto simples como a «comadre» de quem já se tornou amiga, Maria Eduarda desculpa-se, com um sorriso tímido: «Nós somos gente do campo, temos pouca cultura...» Matar os 20 frangos e depená-los não custou nada. «Já tinha prática» diz, desembaraçada. «Quando me inscrevi no Banco de Tempo, ofereci-me para fazer coisas de casa, da fazenda, semear uma plantação, lavar vidros...» Em troca, gostava de «aprender a mexer com computadores». «Só lhes sei limpar o pó», diz, com ar desgostoso.

Se «tempo é dinheiro», como dizem os apressados, é estranho que só agora alguém se tenha lembrado de criar bancos de tempo. Talvez por não ser um bem palpável. Ou talvez por nunca ter sido tão escasso como hoje. Agora, talvez seja altura de pensarmos no tempo que ganhamos quando damos tempo aos outros.

As origens do Banco de Tempo

Enquanto a solidariedade era uma prática comum, projectos como o Banco de Tempo não eram necessários. O primeiro surgiu formalmente em 1994, na aldeia italiana de Santarcangelo di Romagna, por iniciativa de um grupo de mulheres. A experiência comunitária tinha como objectivo recuperar os laços de entreajuda que eram parte do dia-a-dia e que, a pouco e pouco, se foram perdendo, sobretudo nas cidades. Hoje, em Itália, há mais de duzentos bancos de tempo, que nasceram por geração espontânea e só agora se vão centralizar numa «agência-mãe». Embora com algumas variantes, existem bancos de tempo um pouco por todo o mundo: nos EUA, no Brasil, na vizinha Espanha ou no Reino Unido (onde surgiram numa altura de recessão e desemprego e se fixaram quase como forma de economia paralela, trocando serviços por serviços, em vez de serviços por dinheiro).

Em Portugal, o primeiro Banco de Tempo abriu a 28 de Janeiro deste ano, em Abrantes, com a bênção do GRAAL - uma associação não governamental de mulheres cristãs, existente em 18 países, «importada» da Holanda por Maria de Lurdes Pintasilgo e Teresa Santa Clara Gomes. A ideia de trazer os bancos de tempo para Portugal partiu de um inquérito que o GRAAL realizou a 1300 pessoas, onde se perguntava quais as suas maiores dificuldades em conciliar vida pessoal e profissional. Como a resposta mais frequente era «o desaparecimento das redes de solidariedade da sociedade civil», a associação tomou essa necessidade como ponto de partida e apresentou, em Maio de 2000, o projecto à ministra da Igualdade, Maria de Belém Roseira, que foi aprovado. Hoje, há 33 membros no Banco de Tempo de Abrantes, abriram já outras duas agências no Montijo e em Coimbra, está prevista outra em Macedo de Cavaleiros a inaugurar em Abril, e outros pólos, como Braga ou Angra do Heroísmo, manifestam interesse em acolher o projecto. No caso de cidades de grande dimensão, como Lisboa ou Porto, Margarida Neto, gestora do projecto, acredita que «o banco de tempo seria perfeitamente exequível, não a nível central, mas local - por bairros, por exemplo». A gestora acredita ainda que, «apesar de se inspirar no modelo italiano, a lógica deste banco de tempo é a do GRAAL, nomeadamente nos objectivos». Na «carta de princípios» que todos os membros assinam ao aderir ao Banco, os objectivos assumidos são: «Promover o apoio à família, a conciliação entre vida pessoal e profissional e a construção de uma cultura de solidariedade.» No fundo, a principal ideia que se pretende passar é que dar tempo aos outros não é tempo perdido.

     

 

No Banco de Tempo, Ana Maria protagonizou o pedido mais invulgar quando solicitou ajuda para matar 20 frangos. Maria Eduarda (de casaco lilás) respondeu à chamada

Mais usuais são as lições, como a de ponto-cruz, que Sara, de 15 anos, dá a Albertina

Marisa Fábrica, gerente do banco, preenche um cheque-tempo, enquanto Teresa se diverte a brincar com as botas que fez