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VIDAS Nº 1490 19 Maio 2001
Lavar
a alma
Procuram
o que não encontram na sociedade - ânimo para enfrentar o dia-a-dia. É
a corrida aos retiros espirituais
Texto
de Katya Delimbeuf
«Optei
por retiros de silêncio nos momentos da minha vida em que senti que
precisava de me encontrar.» Vítor Henriques, assistente social, 30
anos, recorda sobretudo os primeiros dias, quando a ausência de barulho
chegava a ser opressiva. «O corte com os nossos hábitos e ruídos
diários é muito brusco. Lembro-me de o chilrear dos pássaros ser tão
forte que parecia ofender o silêncio. E de, nos últimos dias, ter
sentido a necessidade de vir ao carro ouvir rádio, só para escutar
alguma coisa.» Nessa altura, era tempo de partir.
Vítor é apenas um entre os
milhares de portugueses que procuram com regularidade retiros espirituais.
Respondem a necessidades crescentes numa sociedade onde o materialismo e a
falta de tempo lhes nega o espaço de que precisam para estarem consigo
mesmos. O que é diferente de estar sozinho. Numa casa de retiros, é possível
esquecer o mundo e os seus problemas, nem que seja por um fim-de-semana.
Longe de tudo, só perto de nós.
São variadíssimos os tipos de retiros espirituais existentes: de
autoconhecimento, de silêncio, de casais, de viúvas. Há-os também
tanto para noivos como para jovens. Duram três dias, geralmente aos
fins-de-semana. Uma semana, para os mais corajosos.
Vítor Henriques escolheu a Semana Santa
para fazer o seu retiro de silêncio e, assim, «ouvir Deus em
voz alta». Chegou ao Mosteiro de São Jerónimo de Yuste, perto de
Cáceres,
Espanha, ao início da tarde de uma segunda-feira. Acolheu-o o monge
hospedeiro, o único com quem se pode falar, e só para o indispensável.
Nos quartos, apenas o essencial: a cama, uma mesa de cabeceira com o livro
da vida de São Jerónimo, uma secretária e um crucifixo. Uma folha
indica o funcionamento e os horários da comunidade: laudes (oração da
manhã) às 7h, pequeno-almoço às 8h, almoço às 13h, jantar às 20h e
vésperas (oração da noite) às 22h.
O assistente social lembra-se em especial das refeições, em silêncio,
tomadas com os monges. Almoços e jantares «muito frugais, em
que se comia uma sopa, umas salsichas, uma batata cozida e um ovo. A
expressão 'comer como um abade' não foi inventada com base naquela
comunidade», confessa Vítor, com um sorriso a um tempo tímido e
prestável. «Mas, como eu já sabia como aquilo era, à conta de
outro retiro que tinha feito antes, fiz batota e levei comigo sumos e
bolachas, que tinha comprado num hipermercado espanhol...» A refeição
terminava quando o superior da comunidade tocava um pequeno sino; todos se
levantavam, rezavam uma oração e saíam em fila indiana para os
corredores. «Ao vê-los encapuzados e com aqueles hábitos até
aos pés, parecia que tinha sido transportado no tempo e recuado até à
Idade Média.»
Para além dos momentos vividos em comunidade, o dia é de trabalho
para os monges e de total liberdade para os hóspedes. Com tanto tempo
livre, «pensa-se muito, lê-se, anda-se pelo espaço do
mosteiro, pela quinta, pelos claustros», conta Vítor. «Também
já se vêem, pelo menos em Espanha, algumas pessoas que procuram a paz
dos mosteiros para fazerem as suas teses de mestrado. Trazem o seu
computador pessoal e instalam-se.» Daí admitir-se já a emergência
de um «turismo monacal».
Enquanto na Europa e nos EUA se começa a
falar de «turismo monástico» - a maior livraria virtual (Amazon.com)
disponibiliza guias sobre hospedarias conventuais -, em Portugal são cada
vez mais os que rumam a estas casas, cerca de 40, espalhadas pelo país.
Os responsáveis pelos retiros recusam qualquer associação com a indústria
hoteleira e asseguram que não são férias aquilo que proporcionam. Mas a
verdade é que só em duas da dezena de casas existentes na área da
Grande Lisboa - no Rodízio (em Colares) e na Torre d'Aguilha (em São
Domingos de Rana) - passam quase 10 mil pessoas por ano.
São sítios geralmente perdidos no meio da natureza, longe da civilização.
Mas também os há estranhamente diluídos na paisagem das grandes
cidades. Entrar em qualquer um deles é aceder a outro mundo. As salas
inundadas de luz têm cortinas de cores suaves e abrem-se para o verde das
árvores ou o azul do mar.
Na Casa de Retiros de Santo
Inácio, todas as janelas dão para a serra de Sintra, desde o Palácio da
Pena ao Castelo dos Mouros, ou para as ondas do mar da Ericeira.
Encontramos o mesmo ambiente na Torre d'Aguilha, onde um amplo jardim
aquecido pelo sol, cheio de mesas e bancos, convida à leitura e à
reflexão.
O silêncio é a atmosfera cultivada em todas as casas de retiros. Em
Sassoeiros, no Mosteiro de Santa Maria do Mar, uma folha de papel
plastificado em cada quarto (16 ao todo) dá as boas-vindas aos visitantes
e lembra: «O bem não faz barulho e o barulho não faz bem. Por
respeito para com todos os que vêm ao mosteiro procurar um lugar de silêncio
e de calma, agradecíamos que não usasse o rádio ou a televisão no
quarto. Evite conversar dentro dele e falar alto.» Desligam-se telemóveis,
bips e afins. Entra-se noutra dimensão.
Os quartos, com aproximadamente um metro por três e todos com nomes de
santos, contam com um mobiliário reduzido: uma pequena cama em ferro, uma
tábua a fazer de mesa de cabeceira, onde repousa um volume do Novo
Testamento, e uma secretária. Ao inevitável crucifixo junta-se um lavatório,
um pequeno chuveiro e uma bacia.
A vida comunitária é outra das regras
subentendidas. A seguir às refeições, é dos próprios hóspedes que
parte a iniciativa: levam o seu prato para a cozinha e, em conjunto, lavam
e limpam a loiça.
Carmen Thadeu, estudante de Psicologia, 21 anos, descreve um retiro como «uma
experiência muito forte, em que o tempo corre muito depressa e os dois ou
três dias valem por um ano». Foram já vários os retiros que
frequentou. «Vai-se à procura de respostas. E, por vezes, há
momentos em que se dá um 'clique' e as coisas fazem sentido. Quando isso
acontece, o retiro valeu a pena.»
Carmen guarda sobretudo recordações de «uma forte comunhão
espiritual e de grandes amizades entre pessoas que não se conheciam
minimamente e que passaram a conhecer-se muito bem». E garante que
ainda mantém amigos dos primeiros retiros. A jovem estudante integra o
movimento JAM (Juventude Alegria de Maria) desde 1994 e participa pelo
menos em um retiro por ano, o da Páscoa Jovem.
Carmen já fez retiros em Gouveia,
Mira, Fátima, Viseu, Rodízio, Santuário do Sameiro, Torre d'Aguilha e
Albergaria-a-Velha. Ultimamente, tem participado na qualidade de
animadora, o que significa ficar responsável por um grupo com cerca de 15
pessoas e ter de «puxar por eles». Significa também que o
seu trabalho de preparação começa meses antes, «a pensar em
todos os momentos e minutos do retiro, em todas as reacções possíveis
do grupo e se este se vai fechar em si mesmo ou reagir bem».
Na Páscoa Jovem deste ano, organizada pela JAM ao longo de um
fim-de-semana, participaram 150 pessoas, entre os 13 e os 50 anos. À
chegada e depois de se apresentarem umas às outras, as pessoas são
divididas em grupos. Manda uma das regras que namorados ou amigos muito próximos
fiquem em grupos diferentes, para que a entrega entre todos seja igual.
Esta divisão procura também evitar a constituição de grupos com
pessoas da mesma idade.
Sábado, 7h30: despertar. Às 8h30 rezam-se as laudes. O pequeno-almoço
vem a seguir, antecedendo o encontro na igreja, às 9h30, de preparação
para o «deserto». Este é entendido como um momento de reflexão
individual enquanto se caminha pela natureza. O objectivo da caminhada é
procurar respostas para três grupos de perguntas, centradas sobre o eu, o
outro e Deus. No final da manhã, os pensamentos de cada um são
partilhados entre todos.
O ponto alto da Páscoa Jovem
é a vigília, que começa à meia-noite e dura até às 3h ou 4h da
manhã. Os animadores encarregam-se de dinamizar os grupos. Cada
participante completa frases como «Tenho medo de...» ou «Estou feliz
porque...». No final da noite, traz-se um quadro branco, e toda a gente
pinta e desenha aquilo que a vigília lhe sugeriu.
Domingo, último dia da Páscoa Jovem. É tempo de balanço. Numa folha
que todos colam nas costas uns dos outros, cada um escreve comentários ao
retiro e à pessoa visada: qualidades, defeitos, o que surgir. A leitura
final é regada com muitas lágrimas e promessas de amizade que -
asseguram os participantes - se cumprem com o passar do tempo.
Maria das Graças Cordeiro, 66 anos, faz retiros desde que frequentou colégios
católicos, na sua juventude. Já nos anos 40 era usual ouvir-se falar no
Retiro dos Intelectuais Católicos ou no Retiro dos Médicos da mesma
confissão. «A princípio, eram todos de silêncio, depois é
que passaram a incluir palestras e formação», explica. Maria das
Graças faz retiros de casais há 34 anos. Entrou, com o marido, nas
Equipas de Notre Dame, um movimento fundado em França durante a II Guerra
Mundial para ajudar as famílias dilaceradas pelo conflito. O objectivo
era elevar a espiritualidade conjugal. Apesar de ter enviuvado há seis
anos, Maria das Graças continua fiel às equipas de casais, «pelas
muitas amizades que fiz lá. Podia ter mudado para uma equipa de viúvas,
mas não fui».
Domingos Fialho já participou em quatro retiros de casais. Com 41 anos,
casado há 19, este profissional de seguros fez o seu primeiro retiro a
dois em 1983, no Rodízio, e repetiu a experiência, sete anos depois, em
Fátima e Mira. «O objectivo de um retiro destes é reforçar a
caminhada e vivência dos cônjuges a nível espiritual.» Para
Domingos, «a grande virtude deste tipo de retiro é proporcionar
ao casal um tempo e espaço de encontro que normalmente este não tem».
É sobretudo um momento em que o casal se dedica a reflectir e a falar
sobre a relação que o une. Discutem-se temas como a sexualidade, a
fidelidade ou a maternidade. Aborda-se a questão do sacramento religioso,
que pressupõe três bens essenciais: fidelidade, fecundidade e
perpetuidade. Fala-se de Direito Canónico. Discutem-se os
desenraizamentos por que os casais têm de passar para serem
verdadeiramente unos, cortando amarras que sejam nefastas. Conversa-se
sobre a evolução do amor ao longo da vida...
Entre reuniões intermédias para debate, troca de experiências e oração,
tenta-se chegar a conclusões. No final, cada um dos membros do casal
compromete-se a melhorar, procurando corrigir o que possa estar a correr
mal. No caso de Domingos, o compromisso foi lavar a loiça durante um mês.
Para ele, estes retiros são uma excelente oportunidade «para
que os casais continuem a namorar, mesmo após o casamento, o que é muito
importante».
Em Portugal, já há algumas pessoas que procuram retiros sem ser por
motivos religiosos. No Mosteiro de Santa Maria do Mar, a irmã Maria
Leonor, a superiora da comunidade, explica que também acolhe gente a quem
o retiro foi recomendado para recuperar de divórcios, depressões,
descansar ou ter o sossego necessário para a conclusão de teses de
mestrado ou de doutoramento. Frisa, no entanto, que «é preciso
saber quem metemos em casa. Têm que ser pessoas de bem».
Continuam a ser os católicos os principais frequentadores destas casas:
catecúmenos, escuteiros ou alunos de escolas como Maristas ou Manuel
Bernardes são hóspedes habituais. A primazia de acolhimento é dada a
católicos, embora «não se feche a porta a ninguém». Mas,
para alguns, não faz sequer sentido procurar-se um retiro espiritual se não
se for crente, já que «o objectivo principal é que a pessoa se
encontre em Deus», diz o padre Burguete, director da Casa de Retiros
de Santo Inácio. Talvez devido à tradição católica do nosso país, não
existe a ideia de um espaço aberto aos que querem simplesmente descansar
ou pôr a cabeça em ordem. O retiro está associado à religião.
Há, no entanto, excepções. O Centro Ecuménico Reconciliação, em
Buarcos, pertence à Igreja Evangélica mas está neste momento na mão de
privados. E o Mosteiro de Santa Maria, na Quinta do Frade, em Lisboa, também
é um exemplo de portas abertas a quem se retira por motivos alheios à fé.
Aqui, pedem-se «referências» quando alguém bate à porta, o que
equivale a perguntar quem é que recomendou a casa. Aceita-se toda a
gente, independentemente de ser ou não católica. Mas quem mais frequenta
o mosteiro são religiosas, seminaristas ou amigas de pessoas que já lá
ficaram. Todas as outras casas de retiros que encontrámos estão ligadas
à Igreja Católica e às suas ordens e congregações. Jesuítas, Monjas
Beneditinas, Escravas do Sagrado Coração de Jesus, Espiritanos, Irmãs
Hospitaleiras da Imaculada Conceição, Irmãs Doroteias, Vitorianas, do
Divino Mestre e Servas de Nossa Senhora de Fátima são algumas das
comunidades religiosas responsáveis por estas casas.
Os preços de alojamento variam entre os 3800$00 e os 5000$00 por dia (o
mais caro que vimos foi 7800$00), com pequeno-almoço, almoço, jantar e
dormida incluídos (a chamada pensão completa). Este podia ser um dos
principais factores de atracção, mesmo para pessoas com motivações não
religiosas. As comunidades que dirigem as casas têm consciência disso,
mas afirmam sem hesitação que não constituem concorrência à indústria
hoteleira. Nas palavras da irmã Maria de Lurdes, da Casa do Bom Pastor (a
casa do Patriarcado), «recebemos toda a gente, mas não somos
uma alternativa para férias».
Só o Centro Ecuménico Reconciliação, na Quinta dos Vais, em Buarcos,
tem permanentemente o seu espaço aberto a qualquer pessoa, sem horários
ou actividades organizadas. «Para o Verão já está tudo
ocupado», informa Primi Jimenez, a actual encarregada do Centro. Foi
a única casa de retiros que encontrámos sem qualquer referência
religiosa, capela ou crucifixos. As dez unidades de alojamento, num vale
silencioso e soalheiro onde o único som que se distingue é o dos pássaros,
tanto albergam casais como grupos até oito pessoas. Por entre o arvoredo,
os caminhos vão dar a Buarcos, a povoação mais próxima, a dez minutos
a pé - o mesmo tempo que separa as pessoas da praia, dos restaurantes ou
do quiosque onde se compra o jornal. Também aqui, o intuito não é
rivalizar com o turismo rural. «Não interessa transformar isto
num sítio turístico», diz Primi. A Quinta dos Vais não quer lá
multidões.
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Vigília da Páscoa
Jovem deste ano
Vítor Henriques,
já com três retiros de silêncio
Reunião semanal
da Juventude Alegria de Maria, na igreja da paróquia do Estoril
A irmã Catarina
O claustro de S.
Jerónimo de Yuste
A irmã Maria
Leonor
O Mosteiro de
Santa Maria do Mar
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