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VIDAS Nº 1500 28 Julho 2001
Manjar
de abade
Agora
já pode viajar ao passado. No Convento de Cristo, três horas bastam
para recuar cinco séculos.
Texto
de Katya Delimbeuf
Fotografias de João Carlos Santos
Ao
longe já se avista o convento. À entrada, dois guardas postados,
trajados com o rigor de outros tempos, marcam a zona de trincheira entre
o nosso mundo e a entrada para outra dimensão. Está tudo a postos para
reviver mais uma Ceia Renascentista, no refeitório dos frades do
Convento de Cristo, em Tomar. Três horas para recuar cinco séculos. Se
sempre quis experimentar a sensação de viver noutro tempo, se é um
apaixonado pela opulência das vestes e dos manjares do Renascimento, se
gosta - literalmente - de comer como um abade, ou se simplesmente quer
mostrar aos seus filhos o ambiente da época, agora já pode. No
Convento de Cristo, todos os terceiros sábados de cada mês.
Os archotes assinalam o
caminho pelo corredor escuro. No interior do pátio, ouve-se o rufo do
tambor e a música das flautas, e há animação de época. De cima das
muralhas, vislumbram-se as pontas de serpentinas coloridas que ondulam
nas mãos dos saltimbancos, vestidos de tecidos lustrosos e garridos. Há
um bobo sentado a um dos cantos, com um chapéu de guizos vermelho e
amarelo, que agita sonoramente ao sabor do vento. Com a famosa janela do
Capítulo a servir de moldura, o Mestre de Cerimónias dá as
boas-vindas aos visitantes: «De nós recebede a firme
determinaçon de vos servirmos, nesta noite conventual, os sons e os
paladares a que non estades habituados, mas por certo perduraron na
vossa imaginaçon...» De barba negra e porte distinto, está
vestido, como aliás todas as personagens da ceia, com o rigor da época:
traz uma boina de veludo vermelho, uma túnica plissada em damasco
verde, com um debrum de pelica castanho. Os «collants» condizem com a
camisa, no dedo usa um anel com uma pedra, ao peito umas lentes, para
ler.
O caminho faz-se seguindo a
luz das tochas, até à sala. À porta, um pobre andrajoso pede esmola e
outro, embrulhado num manto grisalho, está recostado à parede, inerte.
Entra-se no refeitório que em tempos acolheu a Ordem de Cristo, e onde
a única luminosidade é a das velas. Duas longas mesas recebem os 200
convivas, a capacidade máxima do lugar. As paredes vestem-se de
estandartes encarnados com brasões e, no extremo da sala, como que a
presidir, uma enorme cruz lembra que estamos num espaço sagrado. Nas
mesas, os castiçais entrelaçam-se em folhas de videira. Não há
pratos, nem talheres - somente uma tábua de madeira com uma folha de
alface e uma fatia de pão por cima. O pão é o prato. Não convém,
por isso, comê-lo para acompanhar a refeição... À direita há uma
faca. É só. O resto fica à imaginação e ao engenho de cada um. De pão
e faca em punho, os convivas reaprendem a comer - recorrendo até a
algumas formas de malabarismo. Os copos, de barro, como os jarros que
contêm água, vinho tinto e branco, e os aperitivos - chouriço,
queijo, broa e tremoços - cuidadosamente dispostos em cima de uma folha
de couve, completam a baixela.
Acomodados os convivas, entoam-se cânticos
do Cancioneiro de Elvas e de outros cancioneiros ibéricos. Depois da
Saudação, o Mestre de Cerimónias convida-nos a rezar em conjunto: «Levantemo-nos
e oremos». Vai começar a ceia. A ementa é constituída por três
pratos, todos com um paladar bastante adocicado, marcado pela chegada
das especiarias - os sabores dos Descobrimentos. Cada iguaria é
apresentada com pompa e circunstância antes de ser servida. O mestre lê,
em voz alta, as receitas tiradas do Livro de Cozinha da Infanta D.
Maria, anunciando as várias fases do repasto: primeiro «boldroegas»
(almôndegas), depois «coelho em tigela», a seguir «galinha albardada»
- envolvida em ovo, frita em azeite e coberta de açúcar. À sobremesa,
tigeladas, típicas da região de Abrantes, e jeropiga. A comida é
trazida por serviçais com capuzes de várias cores e colarinhos brancos
pregueados, em padiolas - longas mesas com pegas - onde se encontram as
malgas com os diversos manjares. E se, no caso das almôndegas, o uso
exclusivo da faca ainda permite uma postura à mesa relativamente
civilizada, já com o coelho o desafio é maior. É quase impossível não
usar as mãos.
Um monge encapuçado, de túnica
até aos pés, assegura-se de que está tudo à vontade dos convivas: «A
refeição está do teu agrado, irmã? Cuidado com os caminhos do Demo»,
acrescenta, jocoso. Uma boba de tenra idade diverte-se a surpreender as
pessoas, fazendo-lhes cócegas e pregando partidas. Parece um duende,
toda vestida de verde. Semeia atrás de si um rasto de guizos, não diz
palavra e nunca perde a pose séria.
Atrás, a música antiga
instala-se - e o canto. O órgão, o violoncelo, as flautas e as vozes
ecoam pela sala abobadada. A Associação Canto Firme é a responsável
pela música, como pelos números de teatro e de malabarismo. Foi ela
que, a partir de 1990, decidiu começar a promover a organização
regular destas ceias renascentistas. Celebrou com o IPPAR um acordo para
a produção de actividades artístico-culturais no convento,
nomeadamente os Encontros de Música Antiga, como contrapartida pela
utilização do espaço. A Canto Firme conta com um coro, uma escola de
música, um grupo de teatro e outro de saltimbancos. A Região de
Turismo dos Templários associou-se-lhe, avançando com o projecto que
pretende, de agora em diante, ser uma alternativa que associa o turismo
cultural à gastronomia da época. O único busílis pode residir no preço:
dez contos à cabeça, o que, se decidir levar a família, poderá
causar uma sensação de leveza na carteira, inversa à do peso no estômago...
O pedinte vai passando pelas mesas,
roubando tudo o que pode, debicando tudo a que deita mão. A certa
altura, desata a gritar, revoltado. É o início de uma farsa vicentina,
em que o pobre entra em diálogo com um dos monges que se encontra no púlpito,
até ser expulso da sala. Talvez protestasse contra o preço do
jantar...
Entre cada prato encenam-se
excertos de autos de Gil Vicente ou há animação: mulheres de andas,
jograis, saltimbancos, malabaristas com facas e cuspidores de fogo
pintam o ambiente de som e cor. Agitam-se fitas no ar, desenhando círculos
intermináveis, ao ritmo do rufo dos tambores, numa sensação
inebriante. No meio dos dizeres e dos cantares de época, dos paladares
onde se mesclam o acre e o doce e dos jogos de fogo e luz, não se dá
pelo tempo passar.
A ceia termina com o convite
para os comensais seguirem a música. No pátio, assiste-se a um espectáculo
de pirotecnia que irá selar a noite a ouro. Os malabaristas criam círculos
de luz estonteantes com correntes em chamas, enquanto outros formam
nuvens de fogo e calor, ao expelir o álcool que levam à boca. É neste
ambiente aquecido pelo convívio e pelo reconforto de um estômago bem
recheado que Mestre, monges, serviçais, guardas, malabaristas e jograis
se despedem, alinhados dos dois lados da porta, cantando até todos
estarem no exterior. Está frio cá fora. Para trás ficou a magia de
uma noite diferente. Ao fechar da porta, regressa-se ao presente. Em
apenas cinco minutos, avançámos cinco séculos. Ao ritmo do nosso
tempo...
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A
cozinha do Convento de Cristo, em Tomar, onde reina a tertúlia
O
Refeitório dos Frades acolhe as ceias renascentistas
Um
dos momentos da animação durante o jantar |
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